segunda-feira, 17 de julho de 2017

2015 - Situação & Perspectivas - Tom Thomas

Reproduzimos abaixo o livro 2015 - Situação & Perspectivas, de Tom Thomas. Esse trabalho foi recentemente publicado em português no site Bandeira Vermelha (consulte aqui), a partir de uma versão inicial intitulada Para um novo projecto comunista, apresentado com uma instigante crítica do camarada Antonio Barata.
O blog Cem Flores publicou recentemente um outro texto de Tom Thomas que atualizou a análise de algumas questões apresentadas no livro de 2015. Essa postagem pode ser acessada aqui.
Consideramos que a análise de Tom Thomas é importante contribuição para entender a crise geral do imperialismo hoje e seus efeitos políticos e ideológicos. Contribui principalmente na análise do reformismo atual, trecho em destaque na crítica de Antonio Barata, que publicaremos posteriormente.
O artigo apresenta também uma importante proposta de construção de "um novo movimento comunista", último capítulo do livro.
A reconstrução do instrumento de luta da classe operária passará, necessariamente, pela compreensão dos problemas da crise que se abateu sobre o movimento comunista no mundo e é essa a intenção do Cem Flores com a presente publicação.
Boa leitura!
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Para um novo projeto comunista
(2015 Situação & Perspectivas)
Tom Thomas
Breve olhar sobre o passado
Segundo Marx e Engels, as burguesias de outrora temiam muito “um espectro que assola a Europa: o espectro do comunismo”. Hoje ainda, elas têm e dão do comunismo uma imagem tanto mais diabólica e espectral quanto é certo que elas acreditaram que o comunismo as aniquilaria, e que a crise bem poderia fazê-lo sair da letargia.
Ao escreverem o Manifesto do Partido Comunista em 1848, os dois amigos demoliram esses “contos” débeis da burguesia. Fizeram-no com talento mostrando os fundamentos reais do comunismo, as suas características gerais, a sua necessidade histórica. No entanto, e para sua infelicidade (1), o movimento comunista começou por tomar o poder de Estado em situações impossíveis (a efémera Comuna de Paris) ou terrivelmente desfavoráveis (URSS, China) para que pudesse ir até ao seu termo: a abolição da condição de proletário (que é, evidentemente, ao mesmo tempo, a abolição da burguesia). Por outras palavras, a abolição da relação social específica de dominação e de apropriação que é o capital.
Estas condições desfavoráveis não residiam somente no isolamento face a forças burguesas nacionais e internacionais ainda extremamente vivazes e poderosas. Não eram devidas apenas a uma consciência mais ou menos errada das situações, das necessidades e das possibilidades que daí decorriam. Eram sobretudo devidas ao facto de se tratar de países em que a produtividade do trabalho era ainda muito fraca, em que portanto uma quantidade importante do trabalho obrigatório, industrial e agrícola, era ainda necessário. Isto é, em que a imensa maioria da população, proletários e camponeses pobres, não podiam dispor do tempo livre necessário para que pudessem, por uma luta de classes adequada, apropriar-se das condições materiais e intelectuais da produção e do exercício coletivo do poder. Apropriação que é o fundamento de uma sociedade comunista.
Marx e Engels tinham aliás lucidamente previsto que em tais condições de penúria seria difícil, para não dizer impossível, sair do “velho lamaçal” que é a dominação do trabalho obrigatório, repulsivo, alienante sobre o povo (2). Mas, contrariamente ao que dizem certos teóricos, não é por estas primeiras tentativas serem muito difíceis que se justificava renunciar a elas, isso seria trair os interesses mais imediatos dos povos em luta (como a paz, o pão, a terra, a repartição das riquezas, os novos poderes, etc.). Aliás, essas revoluções foram não só heroicas, mas obtiveram resultados consideráveis antes de fracassarem completamente na busca de um processo em direção ao comunismo. “Seria muito cómodo fazer a história universal se só nos empenhássemos na luta na condição de ter hipóteses infalivelmente favoráveis”(3).
Na URSS e na China não se assistiu ao fracasso do comunismo – ele nunca ali existiu, longe disso – mas à interrupção e ao fracasso de um processo revolucionário (na base do desenvolvimento duma burguesia de Estado) antes que este processo pudesse sequer começar a abolir as relações sociais capitalistas (nomeadamente a divisão político-social entre poderes intelectuais e executantes que a Revolução Cultural chinesa tentou, mais ou menos confusamente, atacar). Que a burguesia – por meio de todos os seus ideólogos, intensamente mobilizados, ocupando todos os meios de informação – não tenha deixado de explorar as taras e os crimes do chamado “socialismo real” estaliniano para o confundir com o comunismo, isso era de esperar. Mas como o planeta está hoje sob o jugo de Estados totalitários e criminosos, de máfias político-financeiras ao lado das quais um Al Capone é um pequeno amador, seria caso para dizer que o mundo está pejado de regimes “comunistas”.
“A anatomia do homem é a chave da anatomia do macaco”(4). Não é tanto o passado que explica o presente, mas o presente que explica o passado; são os desenvolvimentos modernos do capitalismo que permitem compreender as situações anteriores. Em particular, é em vista da diminuição drástica, do esgotamento da quantidade de trabalho social necessário para a produção de uma massa enorme de produtos, os mais diversos e os mais eficientes (embora em boa parte supérfluos ou mesmo nocivos do ponto de vista do desenvolvimento humano), que se pode compreender como as revoluções do século XX estavam longe de poder beneficiar-se dessa situação de “abundância” (clarificarei mais adiante) necessária ao comunismo. Essas revoluções tiveram pois que começar por criá-la, inventando um processo de desenvolvimento das forças produtivas compatível (e essa foi a grande dificuldade) com o crescimento do poder político e social dos proletários, mantidos necessariamente, enquanto tais, nas circunstâncias próprias do “reino da necessidade”(5).
Na primeira metade do século XX, esta situação em que dominava ainda a extensão do trabalho obrigatório (6) era também a situação, mesmo se em menor medida, dos países com as forças produtivas então mais desenvolvidas. Assim, as circunstâncias só podiam gerar um movimento proletário que pode ser caracterizado hoje como globalmente e majoritariamente “reformista”.
Das bases do reformismo entre os proletários
O reformismo é uma tendência que sempre existiu entre os proletários (e, claro, nas diversas frações da burguesia chamadas “republicanas” ou “de esquerda”). A sua característica geral consiste em orientar e limitar as lutas à obtenção de melhorias materiais – o “nível de vida”, segundo a expressão geral, como se a este não dissesse respeito também a riqueza das atividades e das necessidades. Melhorias na relação salarial que têm de estar limitadas pela reprodução dessa relação, isto é, pela continuação da valorização do capital — sendo este “crescimento” (a valorização do capital) a condição daquelas melhorias. Por outras palavras, essas melhorias são limitadas não só quantitativamente (a parte do produto que vai para o capital cresce necessariamente mais, com a acumulação, do que a parte que vai para os proletários), mas também qualitativamente: se o consumo se eleva é em grande parte para responder a necessidades alienadas geradas e estimuladas pelo capitalismo. E, ao mesmo tempo, há uma profunda deterioração das necessidades imateriais, sendo o trabalho proletário esvaziado de toda a qualidade, tornando-se também ele cada vez mais alienado e repulsivo com o progresso da maquinaria.
Uma tal orientação reformista retira aos proletários qualquer poder autónomo. Ela não muda em nada o movimento histórico pelo qual todo o poder social é monopolizado pelo capital e pelo seu Estado. Pelo contrário. E uma consequência disso está no fato de ser auto-mantida pelos proletários submetidos ao reformismo a ideia de que a sua sorte depende daquele poder do capital — para cuja reprodução e crescimento eles teriam portanto interesse em contribuir (7). Isso leva-os assim a apoiar “o seu” capital, a desejar o seu crescimento máximo, esperando ou exigindo apenas beneficiar-se dele também, e não que sejam só os outros (patrões, financeiros, estrangeiros, etc.) a terem esse direito. Exigência que encarregam paradoxalmente o Estado capitalista de realizar (paradoxo que releva evidentemente do fetichismo do Estado, de que falarei adiante).
Por isso, impregnados e dominados por esta ideologia reformista, os proletários, na sua maioria, confiam as suas reivindicações a aparelhos sindicais e políticos que se afirmam como os seus representantes oficiais e exclusivos junto do patronato e do Estado, encarregados de negociar uma relação salarial mais equitativa! Estes mediadores transformaram-se progressivamente ao longo da história em quase-aparelhos de Estado, aparelhos de profissionais dotados pelo Estado de importantes meios materiais, de lugares e sinecuras largamente pagos. Desempenham então um papel essencial para circunscrever as lutas proletárias aos limites do respeito pelas condições de reprodução (ou seja, de valorização) do capital, bem como para organizar e estimular a dominação do reformismo sobre os proletários. Papel que sempre teve uma importância particular nos períodos em que as lutas assumiam um sentido revolucionário, ou ameaçavam fazê-lo. Foi então que sindicatos e partidos reformistas (isto é, “a esquerda”) se revelaram à luz do dia como um trunfo ao serviço da burguesia pela sua influência junto do povo. Exemplos não faltam. Por exemplo, em França: 1936, 1945-48, 1968; na Alemanha: 1918-20. Do mesmo modo que apoiaram em graus diversos o colonialismo, o imperialismo, e mesmo as guerras que daí decorriam(8).
Lenine dizia que uma reforma pode, claro, eventualmente, trazer uma melhoria para o povo (hoje, mais frequentemente, é o inverso), mas ao mesmo tempo ela “é uma concessão feita pelas classes dirigentes para deter, enfraquecer ou abafar a luta revolucionária, para dividir a força e a energia, para obscurecer a consciência das classes revolucionárias, etc.”(9).
Mas a maioria dos proletários ignora o segundo lado deste duplo carácter da reforma enquanto a burguesia for capaz de lhes fazer concessões. Dum modo mais geral, enquanto não encararem a possibilidade da abolição da sua condição, os proletários só podem procurar melhorá-la. Fato que os empurra espontaneamente para o reformismo, como ideologia e como objetivo exclusivo das suas lutas, enquanto o capitalismo pode, ou parece poder, fornecer essa melhoria (10). Eles aderiram a essa via particularmente no século XX nos países imperialistas, dado que efetivamente — não falando que duas guerras mundiais, inúmeras exações e massacres coloniais, greves quebradas com as maiores brutalidades policiais e judiciárias foram também alguns outros efeitos – o capitalismo pôde aumentar significativamente o “nível de vida” material dos proletários. A sua pauperização não era notada, uma vez que ela era então, geralmente, só relativa ao crescimento do capital (à parte da riqueza que se acumulava nesse pólo)(11).
Este é um fenómeno transitório na história do capitalismo e próprio dos países capitalistas mais desenvolvidos, e cuja explicação merece ser recordada. Para ser breve, pode-se resumir em duas causas principais:
  1. Importantes desenvolvimentos do maquinismo e da produtividade. Estes permitiram o crescimento da mais-valia (mv) extraída sob a forma dita relativa. Sem repetir aqui a análise desta forma (12), lembremos um resultado dos aumentos da produtividade que estão na base desse crescimento: eles permitem aumentar, durante um certo tempo, tanto o nível de consumo das massas (em resultado da baixa do valor das mercadorias induzida por esses mesmos aumentos de produtividade), como a massa da mais-valia, e portanto os lucros (em resultado duma produção mais massiva, com menos custos de produção e que pode ser escoada).
  2. Expansão duma exploração selvagem dos povos dominados pelos imperialismos, bem como dos seus recursos em matérias primas e agrícolas. O que constituiu, e constitui sempre, uma fonte importante de crescimento da mais-valia nos países imperialistas desde a época da colonização. Crescimento de que os proletários desses países recebem migalhas. O que levou Engels a dizer: “Os operários ingleses comem alegremente a sua parte daquilo que rende o monopólio da Inglaterra sobre o mercado mundial e no domínio colonial.” (13)
Veremos adiante em que se tornam hoje, na época do capitalismo senil, estes dois fundamentos (14) materiais, objetivos, da dominação do reformismo sobre os proletários. Dominação que não é tanto o resultado de uma “tampa” que tivesse sido colocada do exterior pelos propagandistas e organizações do reformismo sobre um proletariado revolucionário fervente, mas que é antes a manifestação dessas manifestações particulares de que aqueles se serviram para exercer e ampliar a sua influência. Muitos conseguiram, frequentemente, taxar de “traição” as distâncias abissais entre os discursos e os atos deles. Mas se, até hoje, apesar das inúmeras experiências que tiveram dessas “traições”, os povos duma forma geral — com exceção de uma minoria — apoiaram, seguiram, reelegeram os dirigentes reformistas, é porque no fundo estavam impregnados dessa ideologia, esperando sempre que chegasse ao poder uma “verdadeira esquerda” que aplicasse com sucesso, sem “trair”, as suas promessas ilusórias. Não era, assim, essa ideologia burguesa o que refutavam, mas aqueles que a “traíam” necessariamente porque ela era inaplicável, utópica.
Deste modo, os movimentos proletários do século XX desenvolveram-se entre estes dois pólos: nos países com forças produtivas pouco desenvolvidas, com fraca produtividade, como a Rússia e a China, a “penúria” foi uma causa objetiva essencial do fracasso do processo revolucionário que aí se iniciou. Nos países mais desenvolvidos, a “abundância” material foi um fator para que a burguesia pudesse estimular o reformismo que era a ideologia espontaneamente dominante entre a maioria dos proletários (15).
O interesse em lembrar estas circunstâncias históricas específicas é o de compreender que outras circunstâncias produzirão outros efeitos. Ora justamente a crise atual revela que entramos na época do declínio inelutável e inultrapassável desses fundamentos materiais da dominação do velho reformismo sobre os proletários. A dominação da ideologia burguesa subsiste evidentemente na base dos fetichismos decorrentes das relações de produção e de troca próprias do capitalismo, mas ela assume agora principalmente formas “extremistas” neo-fascistas, desesperadas e mórbidas (e não a forma “democrática” do reformismo tradicional), de que falarei.
Declínio e desaparecimento das bases materiais do reformismo social-democrata
A situação atual revela à luz do dia a amplitude de um fenómeno iniciado nos anos 70 na Europa (e outros lugares): a degradação, até ao desaparecimento, da situação que alimentava e estimulava o tradicional reformismo social-democrata (16). Com efeito, a sua análise mostra (17) que a crise atual não é apenas uma crise clássica de sobre-acumulação de capital correlativa a um subconsumo das massas, mas que a sua característica mais significativa reside num esgotamento estrutural dos ganhos de produtividade  Por outras palavras, um esgotamento do aumento da extração de mais-valia na sua forma relativa, a única que permite prosseguir — de forma que não seja pontual e efémera — a acumulação do capital (ou seja, do crescimento) da época moderna (produção de massa altamente mecanizada, exigindo um consumo em aumento constante). Esgotamento esse inultrapassável porque os ganhos de produtividade anteriores acabaram por baixar a quantidade de trabalho produtor de mais-valia empregue pelo capital, portanto o valor das mercadorias que mede essa quantidade, a tal ponto que o movimento de valorização desse valor (a produção de mais-valia) — que é própria existência do capital — estagna e mesmo regride (movimento de desvalorização). Para valor evanescente, valorização evanescente. Ou seja, como é que o capitalista em geral poderia aumentar a produtividade e a extração de uma maior quantidade de mais-valia relativa, quando isso exige um imenso investimento para melhorar uma maquinaria já altamente sofisticada, ao mesmo tempo que a poupança de mão-de-obra produtora de mais-valia que ele, capitalista, poderia assim fazer seria pequena, dado que esta mão-de-obra já pouco conta relativamente nos custos de produção (na ordem dos 10% para as grandes empresas)?
Portanto o capitalista não investirá, ou investirá menos (18), apesar de os Bancos o inundarem de créditos quase gratuitos e de os Estados o fartarem de subvenções, baixas de encargos sociais e de impostos, etc. Não se consegue obrigar a beber um burro que não tem sede! Não se consegue obrigar a investir um capitalista que, com isso, não espera aumentar os seus lucros! Acaba o crescimento!
Relembrada esta situação (a senilidade do capitalismo), voltemos à questão que nos importa agora: as bases objetivas do reformismo social-democrata.
A primeira das duas bases que sublinhámos atrás, o crescimento da mais-valia extraída na forma relativa, isto é, obtida pelos ganhos da produtividade geral, está em quebra irremediável como se acaba de dizer.
A segunda, que era concomitante desta, a mundialização imperialista, enfraqueceu também. Os negócios tornam-se mais difíceis nos países ditos “emergentes” (tais como os BRICS(19) apresentados como exemplos de crescimento na prosa mediática), porque também eles são atingidos pela crise. Só para pegar no exemplo da China, tão elogiada e classificada como segunda economia mundial, não se trata apenas de as suas exportações, nas quais se apoiava o seu crescimento, depararem com as políticas de austeridade generalizadas (para os povos). Trata-se, também aí, do esgotamento dos ganhos de produtividade, tanto mais que o capital se debate com uma resistência acrescida dos proletários. Na China, já em 2010, “a produtividade geral dos fatores apresentava mesmo tendência para diminuir cerca de 0,5% por ano” (20). Como por todo o mundo, na China o crescimento aparente assenta cada vez mais no recurso ultra-maciço ao crédito: a dívida acumulada atingiu 220% do PIB no fim de 2013 contra 130% cinco anos antes. Daí, uma massa de capital fictício que se acumula em bolhas.
Não é pois da mundialização que o capital mundializado pode esperar o regresso de um crescimento mesmo molengão. Observemos também que, desde o fim do sistema colonial, os imperialismos têm de partilhar o saque com as cliques burguesas e militares predatórias que tomaram o poder político nas antigas colónias e que se apropriam de uma parte, que elas esperam sempre aumentar (cf. o exemplo célebre dos dois “choques” petrolíferos  dos anos 70), das rendas mineiras e da mais-valia obtida da exploração das populações pelas multinacionais industriais e do agroalimentar.
Para contrabalançar o esgotamento dos ganhos de produtividade, os capitalistas têm de aumentar ainda mais a extração da mais-valia na sua forma absoluta. É isso que os vemos fazer dia a dia com a ajuda ativa de todos os Estados: alongamento do horário de trabalho (semanal e ao longo da vida); aumento da sua intensidade, nomeadamente com a sua “flexibilização”; diminuição dos salários diretos e indiretos (prestações sociais) (21); aumento dos impostos e taxas sobre o povo (e, ao contrário, diminuição dos encargos pagos pelos patrões); etc. (22)
Ora, uma tal política, hoje posta em prática mundialmente e sistematicamente, não pode originar crescimento porque reduz de forma evidente o consumo (23). Aliás, as receitas e as economias que ela pretende fornecer aos Estados para pagarem as dívidas são, além da sua improvável realização, completamente irrisórias em vista dos montantes faraónicos dessas dívidas.
A solução parece então, para muitos, estar numa política (dita keynesiana) de relançamento do crescimento através de uma subida dos salários e dos investimentos do Estado (como as grandes obras de infraestruturas, construção de casas, energia verde, etc.). Mas não é no momento em que o processo de valorização do capital está doente, e mesmo em pane, que uma subida dos salários é possível, tal como não é possível que Estados hiper-endividados aumentem as suas despesas.
O futuro dos proletários e dos povos no capitalismo é a degradação em todos os planos da suas condições de trabalho e de vida. Muita gente já vive esta realidade, e os demais teme lá chegar. Mas o que é importante para a resposta a dar ao problema é compreender que estes são fenómenos absolutamente inerentes à realidade do capitalismo contemporâneo. Compreender, portanto, que a possibilidade de uma escolha reformista já não existe, porque já não existem os seus fundamentos materiais. A menos que se chame reforma, como fazem os ideólogos do capital, às degradações em curso: reformas reacionárias (no sentido próprio do termo: voltar para atrás). O movimento reformista tradicional (“a esquerda”) está condenado a sofrer fracassos garantidos na sua pretensão de melhorar a sorte das camadas populares. Veremos a seguir as consequências, mas apontemos desde já esta: todos aqueles, nomeadamente os defensores dos extremismos estatais (portanto burgueses) tipo FN ou PG em França, que pretendem estabelecer um “bom capitalismo”, ao serviço do todo que seria a Nação, ou melhor ainda, do “humano” em geral, não passam de charlatães, de vendilhões. O único futuro “humano” para os proletários está neste fato: ao mesmo tempo que desaparecem, — e definitivamente, nesta época da senilidade do capital — as bases materiais do reformismo de esquerda, amadurecem as do comunismo. O que é uma grande novidade histórica.
Amadurecimento das bases materiais do comunismo no capitalismo contemporâneo
O comunismo não é uma sociedade ideal inventada ao pormenor por alguns pensadores mais ou menos inspirados. A evolução histórica do capitalismo faz surgir a sua bárbara senilidade. E isto sucede no próprio momento em que ele desenvolveu a um máximo, que já não pode ultrapassar, as forças produtivas. Esta situação que o mergulha numa crise crónica catastrófica contém simultaneamente os meios materiais para construir toda uma outra sociedade (isto é, outras relações sociais), uma comunidade de indivíduos com necessidades, faculdades e atividades elevadas, qualitativamente ricas.
Este conteúdo, a riqueza qualitativa, deve ser explicitado antes de examinar a existência dos meios para a atingir — sem os quais só se poderiam fazer construções no vazio, sonhar com utopias. Lembremos brevemente o que é a verdadeira riqueza para os homens (verdadeira, ou seja, adequada à sua natureza, que é o seu autodesenvolvimento através do seu trabalho ou atividades). O seu primeiro fundamento é a abundância de tempo disponível para que possam desenvolver as suas faculdades e atividades criativas no maior número de direções possíveis, tanto ‘horizontalmente’ (diversidade de atividades) como ‘verticalmente’ (aperfeiçoamento).
Um trabalho rico é evidentemente o oposto de um trabalho obrigatório, repulsivo. Não imposto como uma obrigação, mas expressão de uma necessidade interior (24), de uma vontade livre. Ele é portanto em si mesmo a satisfação de uma necessidade criativa pessoal, e não, como no capitalismo, um trabalho qualquer cujo produto é indiferente, uma vez que se trata apenas de ganhar dinheiro para satisfazer uma necessidade exterior a esse trabalho.
O trabalho rico é, assim, não apenas diretamente, prazer na sua execução, prazer de pôr à prova e desenvolver as habilitações próprias, os conhecimentos e outras faculdades através do esforço, da vontade, da tenacidade que isso implica; mas é-o também porque o seu resultado satisfaz e desenvolve, pelas suas qualidades (utilidade, beleza, novidade, prazer que proporciona, etc.), as necessidades elevadas de outros homens. De modo que esse trabalho satisfaz igualmente essa necessidade que o indivíduo tem de relações sociais feitas, não de concorrência, mas de emulação, de enriquecimento recíproco das necessidades, dos prazeres e das capacidades de cada um. Tanto assim é que o indivíduo só se constrói com e pelos outros, na medida em que a elevação qualitativa das necessidades, das faculdades e das atividades de cada um depende do nível das dos outros, no maior número possível (25), através das trocas recíprocas.
A construção dos homens por eles mesmos foi sempre social, evidentemente. E cada vez mais à medida da elevação das necessidades, da diversificação dos produtos e da complexificação das técnicas, das ciências e dos processos de produção e de troca. Mas social segundo características historicamente específicas de divisão do trabalho e de apropriação. No que respeita ao modo de produção capitalista, o “trabalhador coletivo” (termo que designa a coletivização massiva dos processos de produção) é marcado nomeadamente por profundas divisões do trabalho entre capitalistas “ativos” (dirigentes e “poderes intelectuais da produção”) e proletários, Estados e povos, centros imperialistas e povos dominados. Neste “trabalhador coletivo” a colaboração imposta, como dominação de uns sobre os outros. Essa dominação assenta, e organiza-se, sobre o desapossamento dos proletários, quer do domínio do seu trabalho como do seu produto.
O processo da revolução comunista é o da abolição destas divisões do trabalho que determinam quais são os que possuem, os que dominam e os que se apropriam em detrimento dos outros. A associação será assim o resultado e simultaneamente o meio de apropriação por todos das condições da produção e da vida social. Esse domínio permitirá então que as relações dos indivíduos com a natureza estejam adequados ao facto de a ela pertencerem e não poderem portanto construírem-se arruinando-a a ela. A busca da verdadeira riqueza nada tem a ver com um consumo sempre crescente de tudo e mais alguma coisa, uma simples acumulação de coisas em quantidade. Uma tal associação de indivíduos, detentores em conjunto das suas condições de vida e unidos para se desenvolverem pelo interesse comum do seu enriquecimento recíproco, será pois uma verdadeira comunidade de indivíduos livres, e não uma simples coletivização e cooperação impostas, dado que o interesse de cada um será o de todos, para que todos possam desenvolver livremente e ao máximo as suas faculdades e atividades (26).
Como se vê, estas características gerais do comunismo não saem da imaginação, mas do que é a natureza humana — autoconstrução através do trabalho — e da constatação das potencialidades presentes no capitalismo, permitindo fundar o desenvolvimento de indivíduos de uma essência nova, cujo conteúdo essencial acaba de ser traçado.
Voltemos então ao nosso assunto: as potencialidades, os meios materiais existentes que podem servir de ponto de partida a um processo em direção ao comunismo e até à sua conclusão. Os principais são os seguintes:
  1. Redução drástica da quantidade de trabalho obrigatório usado na produção, considerável “abundância” potencial de tempo livre.
  2. Ou seja, redução do valor de troca, portanto possibilidade de suprimir as suas formas concretas como preço, moeda, dinheiro, etc. A finalidade do trabalho pode tornar-se a produção dos valores de uso e a satisfação de necessidades qualitativamente elevadas.
  3. Coletivização e internacionalização dos processos de produção e das trocas (mas feitas segundo as divisões imperialistas do trabalho). Donde a universalidade dos conhecimentos, das ciências, das necessidades. Por todo o lado, a acumulação dos saberes e técnicas elaborados pelas gerações passadas é, cada vez mais, o fator essencial da produção, como que um “intelecto geral”, um “cérebro social” universal (usurpado, claro, pelo capital e seus “funcionários”, como os que detêm os “poderes intelectuais da produção”).
  4. Uma massa crescente de proletários, em todo o mundo, estão sujeitos a condições de existência cada vez mais difíceis, cada vez mais letais à medida do agravamento (inelutável) das dificuldades do capital, na sua idade senil, em se valorizar e se acumular.
Estas circunstâncias atuais, muito brevemente lembradas, são meios bem reais de um processo que conduz ao comunismo. Não tal qual hoje existem, mas na condição de serem transformados para servir esse fim. Tarefa que exige prosseguir o processo revolucionário depois da revolução política.
Retomemos por exemplo a questão do tempo livre. Como já foi dito, é o desenvolvimento do capitalismo que gera uma diminuição considerável do tempo de trabalho. Um ativo trabalhava umas 3.000 horas por ano em 1870 em França ou na Inglaterra. Um século mais tarde trabalhava metade! E esta tendência foi a mesma por todo o lado à medida da expansão mundial do capitalismo moderno. A questão não está em constatar a que ponto a maquinaria substituiu o trabalho, e sobretudo o trabalho proletário. Todas as estatísticas o demonstram amplamente. A questão está no fato de o capital fazer do tempo de não-trabalho assim desenvolvido não seja tempo livre, tempo utilizável para enriquecimento das capacidades, possibilidades, necessidades, atividades dos trabalhadores. Pelo contrário, reduz massivamente os proletários à miséria física, intelectual, social e moral do desemprego, ou então absorve em seu proveito esse tempo de não-trabalho por meio de ócios absolutamente alienantes.
Mas não é tudo. À medida do seu movimento histórico de acumulação, o capital engendrou uma massa crescente de empregos em funções comerciais, financeiras, estatais, mediáticas, etc., que, imediatamente ou progressivamente consoante os casos, não terão condições de existir porque o processo revolucionário em direção ao comunismo abolirá as relações sociais que geraram a sua utilidade (as necessidades de dominação, de lucros,  de consumo, de usurpação, de dinheiro, de crédito, etc., próprias do modo de produção capitalista). Isso permitirá não apenas que os milhões de pessoas empregadas nesses sectores façam a sua parte do trabalho obrigatório que subsista, diminuindo a parte que cabe aos outros; mas permitirá também — dado que todas essas pessoas e os seus meios de trabalho são financiados pela mais-valia produzida pelos operários — suprimir a quantidade do trabalho destes (sobre-trabalho) que hoje a produz. Dois meios, portanto, de reduzir a quantidade de trabalho obrigatório que subsistirá após a revolução política. E outros ainda aparecerão desde que as condições da produção e da vida sejam transformadas no curso deste processo (pense-se por exemplo nas relações entre as despesas de saúde e o modo de produção capitalista).
Eis apenas algumas notas sobre a questão do tempo livre. O que importa é tomar consciência do imenso potencial de tempo livre que o capitalismo contemporâneo encerra. Não apenas pela partilha do trabalho com os desempregados, mas ainda mais pelo desmantelamento do modo de produção e de consumo capitalista, pela transformação radical das atividades e das necessidades dos indivíduos, dos seus comportamentos, das relações entre eles e com a natureza. Partilhar e mudar o trabalho é necessariamente um processo único. (27)
Vê-se que nada disto pode ser posto em prática no capitalismo. O tempo livre não é um fundamento, pronto e acabado, para o comunismo. Apenas o é potencialmente, enquanto tempo (e é esta a novidade histórica) que pode e deve ser conquistado e transformado pelo processo revolucionário para abolir o trabalho e a condição de proletário, para a apropriação por todos das condições materiais e intelectuais do seu autodesenvolvimento (ou seja, da liberdade).
Potenciais também são os outros fundamentos materiais do comunismo presentes no capitalismo contemporâneo acima evocados.
É assim com a tendência que o capitalismo gera inexoravelmente para a baixa do valor de troca dos produtos, e que desemboca hoje na sua crise crónica. Mas, apesar de tudo, esse valor mantém-se, mais ou menos, através das convulsões violentas e catastróficas da crise: é essa a sua função, e todos os meios são bons, mesmo as guerras mais destrutivas (28). Daí, nomeadamente, a expansão faraónica do crédito (do capital financeiro) como tentativa de perpetuar a acumulação do capital. Trata-se, claro, apenas da valorização fictícia dum capital fictício, o que se traduz rapidamente e regularmente em krachs cada vez mais retumbantes, que ocasionam um agravamento da crise e da situação dos povos. Aqui também é preciso um processo revolucionário para acabar com o valor de troca e as suas manifestações: dinheiro, moeda, preço, etc. Isto é, acabar com as relações de apropriação privada que induzem necessariamente a existência do valor mesmo quando a sua substância, o trabalho social (abstrato), tende a esgotar-se (vimos que a crise atual é a manifestação desta contradição, cujo antagonismo chegou ao ponto de induzir meios de ação extremamente violentos que os funcionários do capital são levados a tomar).
É assim com a mundialização. A internacionalização do modo de produção capitalista suprimiu muitos dos particularismos estreitos, limitados, conservadores, muitos dos confinamentos, organizando a participação de milhares de milhões de indivíduos numa espécie de “trabalhador coletivo” mundial que desenvolveu as forças produtivas a um nível que permite encarar a possibilidade de um futuro sem trabalho compulsivo, como se viu. Mas o capitalismo fê-lo destruindo a natureza e os homens ao ponto de ameaçar pôr fim à humanidade. E também exacerbando uma divisão imperialista do trabalho entre países dominados e países que concentram a posse dos principais meios de produção — nomeadamente os meios científicos — e a propriedade financeira, e, assim, também a apropriação das riquezas. Divisão mundial do trabalho que redobra a divisão “vulgar” que o trabalho sempre gerou e desenvolveu entre “os poderes intelectuais da produção [que] se desenvolvem apenas num dos lados porque desaparecem em todos os outros lados. Aquilo que os trabalhadores parcelares perdem concentra-se perante eles no capital. A divisão manufatureira opõe-lhes os poderes intelectuais da produção como propriedade de outrem e como poder que os domina”(29). Assim, se o capital desenvolveu um certo universalismo — que, em si, não é necessariamente um empobrecimento, nem uma uniformidade, na medida, e apenas na medida, em que se trata da desmultiplicação dos conhecimentos, das atividades, das necessidades, do poder dos homens sobre o seu próprio destino (a sua liberdade) — desenvolveu-o contraditoriamente, com as mais extremas violências, destruições e desapropriações. A mundialização capitalista é, portanto, apenas um fundamento potencial de um processo em direção ao comunismo. O qual tem justamente por tarefa quebrar estas divisões do trabalho organizadas pela apropriação das riquezas materiais e intelectuais geradas nesta mundialização pela burguesia. O que significa permitir a cada um apropriar-se do que lhe for necessário para beneficiar e contribuir para um verdadeiro universalismo para todos, um universalismo conseguido pelo enriquecimento recíproco das qualidades pessoais, específicas, próprias de cada indivíduo.
Em resumo, pode afirmar-se que os principais fundamentos materiais necessários ao sucesso de um processo revolucionário comunista existem hoje no seio do capitalismo. Mas apenas potencialmente, e como que escondidos pelo uso e as formas concretas que o capital lhes dá. É preciso pois que sejam postos à luz e sobretudo transformados e desenvolvidos, de outro modo, por aquele mesmo processo. Este é o objeto do processo revolucionário, e é o que torna inelutável esta fase dita de transição entre a revolução política e o comunismo. Só os proletários podem ser o sujeito desta transformação para a levar até ao fim, até à abolição da condição de proletário. Mas também para isso é precisa uma transformação: que eles se tornem uma classe, ou seja unidos na vontade e na atividade de realizar o potencial revolucionário, o devir libertador de todos estes fundamentos.
Hoje a análise da situação geral — que tem certamente de concretizar-se pela análise das situações particulares — mostra a necessidade e a possibilidade (30) dum tal processo. Esta possibilidade é uma situação nova na história. Ela deverá portanto suscitar um movimento proletário novo. Não já massivamente reformista como o antigo, mas massivamente empenhado no processo para o comunismo. Movimento que está por criar.
Construir um novo movimento comunista
Eis uma tarefa que parece completamente utópica quando se constata o estado de imensa fraqueza do movimento proletário e, um a par do outro, dos comunistas desde há muito.
“Temos de cantar as revoluções de amanhã e não as de ontem, às quais apenas devemos o respeito” (31). É isto que temos de fazer também hoje, partindo da análise da situação específica do capitalismo contemporâneo, em lugar de nos contentarmos de repetir incessantemente a história das revoluções de ontem. Porque se efetivamente é devido o maior respeito aos revolucionários do passado, as circunstâncias contemporâneas pouco têm a ver com as da sua época em que as condições objetivas de um processo revolucionário comunista estavam longe, muito longe de estar maduras.
Vimos, porém, que hoje estão maduras. A ponto de vermos aparecer entre alguns intelectuais aqui e ali  a ideia de que, sob o efeito do desvanecimento do valor que referi anteriormente, o capital acabaria de qualquer modo por desabar por si mesmo (32). Para alguns comunistas (33) este desabar necessitaria, apesar de tudo, da intervenção de um ator, de um sujeito revolucionário. Mas não o reconhecem senão na forma dum sujeito mítico: proletários que não o seriam, ou seja que não lutariam a partir daquilo que são mas a partir daquilo que já não são, como não-proletários. Porque, segundo eles, enquanto proletários só poderiam ser agentes do capital, reproduzindo-o sempre. O que representa apenas parte de uma realidade da qual não veem o carácter contraditório, de modo que também não veem a revolução comunista como um processo em que a abolição da condição de proletário é o fim e não o começo.
Assim, para A. Jappe (34) “a superação do capitalismo não pode consistir no triunfo dum sujeito criado pelo próprio capitalismo”. Para que exista um sujeito revolucionário “deveria primeiro dar-se uma revolução antropológica”. Por outras palavras, o proletário teria de ser um homem novo antes mesmo do processo revolucionário que cria essa transformação (transformação recíproca dos homens e das relações sociais). Mas geralmente, segundo Jappe, o capitalismo não cria “as bases daquilo que o vai substituir”, mas apenas misérias, devastações e ruínas. O que “forçará a humanidade a desembaraçar-se dele”. Aqui está um curioso sujeito revolucionário que em todo o caso aparece: a humanidade. Mas não nos podemos desembaraçar do capitalismo sem ao mesmo tempo o substituir por um outro sistema social, que não cai do céu, que tem de ter fundamentos materiais. Sobre isso ficamos sem saber nada — o que é lógico para quem não vê no que existe nenhuma base objetiva para substituir o capitalismo. Conclusão: nada existiria hoje para nos “desembaraçarmos” do capitalismo, a não ser a “humanidade” que terá de dar um salto no vazio! A revolução é “um salto no desconhecido”.
Dizer que o proletário é um agente do capital quando procura melhorar a sua condição no quadro da relação salarial, uma vez que permanece dentro dessa relação que ele reproduz e em que se reproduz, é querer arrombar uma porta aberta por Marx há muito tempo. Ficar por aí, é esquecer que se o proletário procura evidentemente melhorar a sua existência na situação concreta em que está (e reside aí, como disse, a sua tendência espontânea para o reformismo), defronta-se mais cedo ou mais tarde na história com o carácter fundamentalmente antagónico da sua relação com o capital. A qual se manifesta regularmente pela degradação e não pela melhoria esperada: despojamento acrescido, desemprego, miséria, repressão brutal das lutas, papel de carne para canhão são as mais frequentes respostas que dão os capitalistas às necessidades que os proletários exprimem enquanto tais. Por isso, muitos proletários, mesmo se não constituíam a maioria, foram levados, a partir das lutas pelas suas necessidades imediatas, a elevar o nível da luta ao ponto de quererem eliminar os capitalistas, tomando consciência pela experiência e pela reflexão de que não estão apenas em concorrência com o capital pela partilha salários/lucros, mas num antagonismo irredutível que os opõe a ponto de o capital na sua idade senil tender a nem sequer os poder manter no seu estado de assalariados.
Jappe, e o movimento intelectual de que ele é um rosto, têm razão na sua crítica ao antigo movimento operário reformista, nomeadamente à sua fração dita comunista, dirigida pela 3.ª Internacional estalinista. Esse movimento, com efeito, apenas considerava o proletário como sujeito enquanto produtor dominado e explorado pelos proprietários dos meios de produção. O futuro radioso que estes partidos ditos comunistas lhe prometiam, segundo este modelo, consistia numa melhoria da sua condição material desde que ele se sacrificasse de corpo e alma ao crescimento dum capitalismo de Estado cuja dominação ele suportaria de fato (“os quadros decidem de tudo”, dizia Estaline).
Estes intelectuais — e é por isso que falo deles — têm o interesse de chamar a atenção para o fato de a finalidade da revolução comunista ser a abolição do proletário, e portanto de se interrogarem sobre os meios dessa abolição. Não ver nenhum desses meios no capitalismo é pretender construir o processo comunista no vazio, fazer dele um ideal puramente teórico e utópico. Mas ao menos isso obriga a lembrar que os meios materiais para fundar esse processo que existem no capitalismo não são condições “já prontas” desde o momento em que o proletariado tenha derrubado o Estado burguês e abolido a propriedade privada jurídica e financeira nacionalizando os meios de produção e de troca (contrariamente ao que Marx por vezes escreveu). Ora, esses meios que permitem fundar o processo comunista existem, mas na condição de serem transformados.
Mas esses intelectuais não têm razão em separar completamente a luta “económica” (a luta salarial em sentido amplo) da luta pelo comunismo. A primeira sendo para eles inteiramente o fruto do proletário enquanto tal, agente do capital, uma vez que o reproduz; a segunda, do proletário que, não se sabe por qual metamorfose, já não seria proletário.
Porque evidentemente os proletários, como toda a gente, partem das suas necessidades imediatas e estas são variáveis segundo as épocas e as situações. Pode ser a paz, o pão, a partilha das riquezas, as condições de trabalho, o fim do desemprego e muitas outras coisas. É quando eles compreendem, em certas situações, que têm de se apoderar do poder para dar satisfação a essas necessidades que eles se formam em classe pelo facto de se unirem contra o Estado burguês. Enquanto classe, compreendem que podem e devem ser uma força independente. Com esse força que até aí ignoravam, elevam então o nível das necessidades que querem satisfazer e tomam consciência de que satisfazê-las é tomar posse dos meios materiais, intelectuais, sociais das suas vidas. Emerge assim, com a constituição dos proletários em classe, a consciência da necessidade e da possibilidade duma outra sociedade que satisfaça as necessidades radicais até aí enterradas porque eram consideradas utópicas sob a dominação da ideologia burguesa que não cessa de tonitroar sob todas as formas — incluindo universitários e supostos cientistas — o acrónimo thatcheriano TINA, There Is No Alternative ao capitalismo. Ele é “a realidade” e é pura ignorância, pura loucura tentar negá-la opondo-se às exigências de valorização do capital (do “crescimento”).
Ora, o que é historicamente novo na situação contemporânea, para lá das múltiplas diferenças de país para país, é que, se os proletários continuam obrigados a lutar para assegurar a sua sobrevivência diária contra “as usurpações do capital”, como dizia Marx, essa luta esbarra com a impossibilidade do capital se reproduzir sem ter de aumentar terrivelmente essas usurpações, sem degradar sempre mais a situação dos proletários. A luta reformista tradicional, tanto nas suas formas como  nos seus objetivos, hoje o mais que pode fazer é travar um pouco, e momentaneamente, o desenvolvimento dessa pressão, mas não de lhe inverter a tendência. Na época contemporânea, a da senilidade do capital, de duas uma: ou as lutas proletárias fracassam quase inevitavelmente se permanecerem  no velho terreno reformista dum crescimento da acumulação do capital acompanhado duma “justa partilha” das riquezas; ou, providas da experiência e da compreensão das causas desses fracassos, as lutas se elevam ao nível de uma luta de classe revolucionária contra o estado, esse organizador armado da existência e da acumulação do capital, cada vez mais despótico e violento na época da sua senilidade.
Marx e Engels previram, desde 1848, no Manifesto do partido Comunista, que o capital chegaria um dia a um estádio de desenvolvimento histórico em que “a burguesia não pode já reinar porque ela é incapaz de assegurar a existência do seu escravo no quadro da sua escravatura”, incapaz de assegurar a existência do proletário no quadro da relação salarial (das relações de produção capitalistas em geral). Eis efetivamente que isso mesmo está em vias de acontecer. Eis o Estado definitivamente impotente para subjugar a crise e o crescimento da miséria social, que ele tem pelo contrário de promover e organizar. Os seus lugares cimeiros são ocupados por diversas frações burguesas, cliques e máfias tão cínicas como parasitárias e corrompidas, dando todos os dias o espetáculo insolente da sua corrida às prebendas mais gordas. Mas também, por tudo isso, cada vez mais desconsideradas e vomitadas pelos povos. Como se elas retomassem a frase atribuída a Luís XV: “Depois de mim, o dilúvio”. No que lhes diz respeito, mais acertado seria: “comigo”.
Mas apesar deste descalabro, deste apodrecimento do seu trono estatal, a burguesia ainda reina, e não hesita em recorrer mais abertamente a meios ditatoriais. Isto, porque aqueles que ela esmaga estão em completa desordem, a sua raiva e a sua cólera (deixemos de lado, por serem insignificantes, os espíritos “indignados” ou “aterrados”) não têm saída, não sendo capazes ainda de gerar a força organizada que permitiria transformá-las em força, em classe capaz de acabar com aquele reino.
Os proletários, nos velhos países capitalistas como a França, estão numa espécie de entreato.
Por um lado, na sua maioria, são dominados ideologicamente pelos velhos fetichismos engendrados pelas relações sociais em que se fundamenta o capitalismo. Não se trata de simples fantasmas — esses fetichismos têm por base as aparências que tais relações assumem à superfície. Aparências cujas raízes são ignoradas, mas que são, mesmo assim, reais. Os intelectuais burgueses, eles próprios embebidos desses fetichismos, tomam esses fenómenos aparentes por toda a realidade do capitalismo. Este real truncado formaria segundo eles um sistema racional, respondendo nomeadamente a “leis económicas” que eles conheceriam, e que não se poderiam infringir sem consequências ruinosas para todos.
A propósito desses feiticismos, lembremos:
– O feiticismo da mercadoria, segundo o qual “a economia” não seria política, não seria uma relação social de produção historicamente específica, mas simples relações entre as coisas aparentes que elas geram (mercadorias, capitais, preços, lucros, moeda, etc.). Simples relações entre coisas e as suas quantidades, a economia poderia portanto ser gerida cientificamente.
– O fetichismo do dinheiro (35), o cúmulo do fetichismo como diz Marx, de acordo com o qual o dinheiro poderia criar riqueza como uma pereira dá peras. É o que leva a criticar “a finança” não enquanto tal, mas simplesmente pelos seus “excessos” que seriam prejudiciais ao crescimento. E leva também a crer que, fornecendo dinheiro quase gratuitamente e em grandes quantidades aos capitalistas (perdão, “às empresas”), estes poderiam relançar a produção, o crescimento, quando não é o dinheiro que lhes falta mas a possibilidade de o transformar em meios de produzir mais-valia.
– O fetichismo do Estado, segundo o qual ele representaria o interesse geral comum a todos, e poderia portanto gerir a economia de acordo com esse interesse, dado que ela seria relações entre coisas.
Por outro lado, estes mesmos proletários têm a experiência de que aquilo que os ligava ao reformismo, a melhoria do seu nível de vida material, desaparece. Porque eles sofrem no dia-a-dia essa realidade do capitalismo senil que consiste no fato de ele só poder sobreviver por meio de uma degradação contínua das condições de existência dos proletários. Toda a esperança — não já sequer de melhorar o nível de consumo, mas mesmo de impedir a sua degradação, à maneira do velho movimento reformista “de esquerda” — está votada ao fracasso (à parte possíveis sucessos localizados e efémeros). Quando muito, os proletários só podem, por esse meio, abrandar aquela degradação, obter por um momento o menos mau em vez do mau. E convém incluir nesse menos mau o futuro próximo que não é tido em conta nas consciências de hoje: um próximo crash mais destruidor que o de 2008, desastres ecológicos acrescidos, subida dos extremismos burgueses, guerras, etc.
A crise (o capitalismo senil) gera por todo o lado uma instabilidade política e social crescente, recriminações, lutas de classes, guerras civis. Mas, nomeadamente nos principais países europeus, a maioria dos proletários encontra-se nesse entreato que acaba de ser evocado em que reina a indecisão, a desordem, as frustrações que se traduzem por vezes, aqui e ali,  por bruscos acessos de cólera, tão violentos como efémeros, revoltas sem saída. Entre muitos, a persistência dos fetichismos inerentes ao capitalismo tende, com a crise, a empurrá-los para os extremismos burgueses (36), como a FN [Frente Nacional] ou a FG [Frente de Esquerda] em França, ou também os integrismos religiosos. A isto junta-se, como sempre nos períodos de crises agudas, uma reação conservadora numa parte da população que se apega ao passado de antes da crise, em que “se vivia melhor”. Este passado parece-lhe melhor que o presente, e mais ainda que um futuro que surge confusamente cheio de ameaças e de desordens assustadoras.
Pode admitir-se — persistindo estes fetichismos assim ou assado, uma vez que são gerados pelas relações sociais capitalistas — que os extremismos burgueses sejam a via escolhida pela maioria dos proletários. Essa é uma possibilidade dramática. Mas estaríamos a negligenciar os fatores que já permitem enfraquecer essa dominação ideológica, e que se reforçam a par da crise. A qual crise ensina, pela experiência, que o Estado é incapaz de impedir que ela se agrave, bem como impedir que se agravem as condições de vida dos proletários, que ele tem pelo contrário de degradar para manter a existência dessa sociedade fundada sobre a valorização do capital, razão pela qual o Estado existe. A crise ensina muitas outras coisas ainda. De modo que uma multiplicidade de fatos, ou antes de malfeitorias, trazem assim a possibilidade de sapar a ideologia burguesa no movimento proletário. Foi este género de situação, que torna o presente bem sombrio, que levou Marx a dizer em 1843: “Não se pode dizer que eu tenha em alta consideração o tempo presente, e se apesar de tudo não desespero dele é porque a sua situação desesperada é precisamente o que me enche de esperança”.(37)
A situação atual é pois particularmente confusa, indecisa. A extrema fraqueza do movimento proletário é evidentemente também a dos comunistas. As duas vão sempre a par. Os proletários conseguirão constituir-se como classe unindo-se contra o Estado? Os comunistas saberão contribuir para isso? Este é de qualquer modo o seu objetivo.
O primeiro passo que têm a dar, sendo hoje tão pouco numerosos e tão dispersos, é unirem-se. Unirem-se significa também delimitarem-se evitando essas duas escolhas bem conhecidas: o sectarismo e o oportunismo. O que impõe unirem-se na base de uma análise comum da situação contemporânea, a qual só pode ser feita, no estado de fraqueza de hoje, nos seus traços gerais mais essenciais (mais tarde as análises e as propostas de ação serão afinadas, juntamente com os debates, em função dos desenvolvimentos concretos, práticos do movimento revolucionário). Esta primeira análise comum mínima pode e deve compreender:
1.º As causas específicas da crise: esgotamento dos ganhos de produtividade e do crescimento da extração de mais-valia na sua forma relativa; declínio do valor.
2.º As consequências concretas que daí decorrem:
  1. No plano dos fatos objetivos: esgotamento definitivo do crescimento capitalista. Para a sobrevivência do capitalismo, obrigação de um recurso acentuado à extração de mais-valia na sua forma absoluta, a um agravamento da destruição da natureza (38), à eliminação duma massa crescente de proletários pela miséria, as doenças, as guerras.
  2. No plano da luta política, necessidade de uma oposição clara e combativa aos extremismos burgueses de aparência radicalmente crítica do capitalismo contemporâneo dito “liberal”, tipo FN ou FG (39); necessidade de construção de uma organização independente dos partidários do comunismo com vista a estimular e orientar a luta dos proletários visando a destruição do Estado burguês, abrindo a via para uma abolição das classes na base do aumento do tempo livre (“a abundância”) utilizado para abolir as divisões sociais do trabalho capitalistas que originam essas classes, ou seja generalizar o trabalho e as necessidades ricas para todos, o domínio por todos das condições materiais, intelectuais e sociais da vida.
Este primeiro passo não será o da criação dum partido comunista, o qual só pode emergir e constituir-se em relação dialética com um movimento proletário decididamente anticapitalista. Mas é uma preparação. É a atividade comunista possível na situação de grande fraqueza como é hoje a dos comunistas, em transição entre um antigo movimento comunista que degenerou por completo, e um novo movimento a criar aplicando nomeadamente o princípio de construir o verdadeiro contra o falso, a nova organização revolucionária contra a antiga reformista, a independência e a força do proletariado contra a influência das ideologias e das organizações burguesas no seu seio.
Neste estado atual de quase inexistência dos comunistas, a sua associação só pode no imediato fixar um primeiro objetivo modesto: fazer-se compreender pelos proletários, criar entre eles uma corrente de opinião, por muito fraca que seja para começar, contra as falsas soluções estatistas. Para isso precisam de edificar um sistema mediático (teórico e propagandístico) que seja ao mesmo tempo utensílio de intervenção junto dos proletários mais interessados em elevar o nível das lutas, e utensílio de unificação e de progressão política da associação através de debates e de experiências.
Os temas para começar esse trabalho não faltam, evidentemente. Por exemplo:
Combater a ideologia dos reformistas de esquerda segundo a qual a crise poderia ser resolvida no capitalismo pela redução das desigualdades — efetivamente faraónicas — dos rendimentos e dos patrimónios, o que permitiria, dizem, relançar o consumo e através disso os investimentos.
Na mesma ordem de ideias, combater a ideia falsa de que é “a finança” que, captando e retendo a riqueza na sua esfera, é a única responsável pelo bloqueio do crescimento e do emprego. Ou ainda que o emprego poderia ser preservado por “acordos de competitividade”, que não passam de escroquerias.
Duma maneira geral, combater a ideia de que a crise poderia ser ultrapassada por meio de uma degradação, terrível mas momentânea, das condições de vida dos proletários e das outras camadas populares, ou por meio do Estado que poderia promover um “bom capitalismo”, verde, justo, patriota, nacionalista, consoante os casos, pondo “a finança” debaixo da sua bota ao serviço de todos, do “interesse geral”.
Uma tal luta contra esta ideologia burguesa enganadora e corruptora deve ser ao mesmo tempo acompanhada de propostas positivas. É a partir das lutas imediatas, das preocupações e necessidades que elas expressam, que é preciso combater as falsas soluções sustentadas por essa ideologia, ao mesmo tempo que se torna necessário mostrar quais seriam as respostas adequadas a tais necessidades, as suas condições de realização, que são igualmente as da sua necessária transformação em necessidades ricas.
A crítica comunista não tem por objeto dar lições do alto duma qualquer cátedra “marxista”, mas responder a necessidades concretas tal como se exprimem espontaneamente nas lutas. Não diz que essas necessidades devem ser rejeitadas por serem as necessidades do proletariado tal como ele hoje existe nas suas relações com o capital, as condições do quotidiano reificado e alienado atual. Diz a “verdadeira palavra” dessas lutas, isto é, que elas são as vias, os meios e as condições para satisfazer essas necessidades(40), o que implica um processo no curso do qual eles se transformam, e portanto no curso do qual os objetivos das lutas se transformam.
Este assunto da transformação das necessidades no curso das lutas para as satisfazer merece uma atenção. Ilustrêmo-lo com uns exemplos:
Dum modo geral, a satisfação das necessidades mínimas do proletariado para viver implica hoje que ele tome o poder. Mas que significa isto? Se isso começa pela destruição do Estado burguês e da propriedade privada jurídica e financeira das condições da produção, isso conduz desde logo à necessidade de ter o “verdadeiro” poder, isto é o poder sobre todos os meios (materiais, intelectuais, sociais), em todos os domínios (produção, gestão do território, urbanismo, alojamento, educação, demografia, etc.) da construção da vida — por outras palavras, à necessidade de abolir a condição proletária. Mais particularmente, as reivindicações de uma melhor partilha das receitas e dos patrimónios colocam-se em primeiro plano diante de desigualdades que ultrapassam a imaginação (41). A questão não tem a ver com a urgência evidente de abolir estas desigualdades, ou pelo menos de as reduzir muito drasticamente, mas com o facto de o capitalismo atual não o poder fazer. A sua sobrevivência, pelo contrário, exige imperativamente que baixe continuamente o “custo do trabalho” e a pauperização de uma massa crescente de trabalhadores precarizados e de desempregados. Torna-se então evidente que essa necessidade de igualizar a riqueza exige a apropriação dos meios que a produzem: é assim a necessidade da posse desses meios, isto é, da abolição das classes, das divisões do trabalho em que assentam as classes, que surge por detrás da necessidade de igualdade.
Tratar corretamente, ou seja examinando-a até ao fundo e sob todos os aspectos, esta questão da partilha das riquezas, da equidade ou da igualdade dessa partilha, torna-se ainda mais importante quando ela é exacerbada pela crise. É aliás uma reivindicação essencial do movimento proletário desde as suas origens que o levou bastantes vezes a afrontar diretamente a burguesia, primeiro no próprio seio das revoluções burguesas. Foi assim com a luta dos “niveladores” na Inglaterra durante a guerra civil (1647-1649). Foi assim com os “sans-culottes” igualitaristas durante a Revolução Francesa, como os da secção do Jardin des Plantes que apresentou em 1793 à Convenção a reivindicação “que o mesmo indivíduo só possa ter um máximo; que ninguém possa ter mais terra que a necessária para um número determinados de charruas; que o mesmo cidadão só possa ter uma oficina ou uma loja” (42). Babeuf prolonga a reivindicação que, na sua obra famosa A Conspiração dos Iguais, propõe a nacionalização da propriedade, que cada um trabalhe segundos os seus talentos, e que os produtos de todos sejam postos em comum com vista a uma distribuição igualitária. E a reivindicação prosseguirá e aperfeiçoar-se-á desde a Comuna de Paris até à Revolução Cultural chinesa, que teve pelo menos o mérito de a elevar até à questão radical da abolição da divisão capitalista do trabalho entre “poderes intelectuais” e “executantes” dominados e desapossados.
Falando da “verdadeira palavra” dessas lutas, Engels dizia já que por trás da luta pela igualdade estava a luta pela abolição das classes dominadas e dominantes. E efetivamente, como vimos, a partilha das riquezas foi muitas vezes uma reivindicação que conduziu uma parte mais ou menos importante dos proletários a transformar as suas lutas por melhores salários e condições de vida em lutas de classe contra classe. Todavia, mesmo quando elas tomavam esse carácter revolucionário, continuavam a ser lutas da época da dominação do trabalho obrigatório e repulsivo, em que, na melhor das hipóteses, apenas se tratava de partilhar esse trabalho e os seus produtos — “de cada um segundo as suas capacidades, a cada um segundo o seu trabalho” — e não da sua abolição, pelo menos não antes de uma fase de desenvolvimento das forças produtivas.
Hoje, pelo contrário, o que é característico é o esgotamento dessa quantidade de trabalho compulsivo, proletário. Aquele que subsistir após a revolução política será partilhado, como se disse, tal como as riquezas correspondentes às novas necessidades produzidas em abundância por uma maquinaria ultra-aperfeiçoada (e que poderá sê-lo ainda mais dado que os ganhos de produtividade já não serão travados pela ditadura das taxas de lucro). O tempo livre, como referido atrás, será o meio da apropriação por todos das condições da produção, ou seja, da abolição da condição de proletário. O mesmo é dizer que hoje, por detrás da luta pela partilha, pela igualdade, existe de modo imediato a luta pelo tempo livre como tempo de luta por essa abolição (o que não acontecia no tempo de Engels).
Dito isto, chega-se a um outro exemplo de transformação das necessidades e objetivos no curso das lutas: a questão da luta por mais trabalho, pelo emprego a todo o custo. Essa transformação está em que o “verdadeiro sentido” da necessidade espontânea de mais trabalho pode e deve dar lugar, pelo contrário, à afirmação da necessidade de menos trabalho, e de um outro trabalho, um trabalho rico. Nas lutas pelo emprego os comunistas não se contentam em opor-se aos acordos ditos de competitividade, às falsas soluções nacionalistas, protecionistas,  xenófobas, estatistas, avançadas pelos diversos extremismos burgueses. Eles mostram que o capitalismo hoje já não pode fazer mais do que destruir empregos degradando os que subsistem e arruinando o planeta. Mais ainda, mostram que esse “verdadeiro sentido” da luta pelo emprego, única, formidável, magnífica perspectiva, e única solução para salvar a humanidade, tornada absolutamente necessária e completamente possível pelo próprio estado do capitalismo contemporâneo.
Para os comunistas, trata-se de partir das necessidades imediatas, urgentes, dos proletários, mas apontando como tarefa — através da confrontação da experiência e da teoria, da ligação do particular com o geral, das aparências com a raízes — contribuir para que essas lutas avancem no caminho que conduz à abolição do proletariado por ele mesmo. Popularizar, fazer compreender, organizar a luta por esse objetivo, significa romper com o velho movimento operário reformista. Significa retomar a proposição de Marx, de há cento e cinquenta anos, que as novas circunstâncias permitem e forçam portanto imperativamente a colocar na ordem do dia do movimento proletário: “Em vez da palavra de ordem conservadora: um salário justo para um dia de trabalho justo, [os proletários] devem inscrever nas suas bandeiras a palavra de ordem revolucionária: abolição do salariato”.(43)
Claro que um tal objetivo comunista pode parecer utópico no estado de terrível fraqueza do movimento proletário de hoje, perdido nessa situação de entre-cá-e-lá em que precisa de abandonar os hábitos do passado e inventar um novo caminho que ainda não é perceptível. Mas, ao invés, é realista considerar que o capitalismo senil gera e gerará cada vez mais as circunstâncias que permitirão sair desse entre-cá-e-lá, porque o agravamento da sua crise levá-lo-á a tomar medidas que suscitarão movimentos de revolta sempre mais intensas e massivas. Mas serão estas radicais? É este o problema a resolver. De fato, a passagem dos proletários para posições e atividades revolucionárias não se faz automaticamente sob o simples efeito de condições objetivas favoráveis. É por isso que é preciso um partido comunista, e, para começar, a unidade, a associação dos comunistas numa base elementar e uma forma flexível, como foi esboçado atrás.
Porque não imediatamente um partido comunista no modelo bolchevique do passado, perguntam alguns, considerando-o imutável. Porque:
1.º Um partido que não tenha, nas condições atuais, quase nenhuma ligação com as massas proletárias, no seu seio, não passaria de um grupúsculo ridículo autoproclamado, uma impostura.
2.º Para que essa ligação exista, é preciso também que exista no proletariado uma necessidade correspondente, uma necessidade de ultrapassar as tradicionais lutas salariais e pelo emprego, de procurar e construir uma real alternativa que permita sair dos recuos e das derrotas do período atual, que rompa portanto com os partidos e sindicatos do sistema burguês. Sem a emergência e a afirmação de tais necessidades, as propostas comunistas só encontrariam indiferença e hostilidade. (44)
3.º Enfim, e para resumir, que partido? Os do passado que conseguiram avançar pelo caminho do comunismo antes de fracassarem não são necessariamente um modelo. A organização comunista deve responder a uma situação que hoje não é a mesma de ontem — ela modifica-se segundo as diferentes etapas do processo revolucionário ou esclerosa-se. Essa organização não tem portanto nada de imutável, sejam quais forem as circunstâncias, nem nos seus objetivos estratégicos e táticos, nem nas suas formas, nem nos meios que ponha em marcha.
Não se discute aqui portanto a questão de criar um partido porque ela não se coloca ainda. O que se coloca é preparar-lhe a criação naquilo que dependa dos comunistas. Essa deveria ser a finalidade de uma associação flexível dos comunistas que é preciso hoje criar. Ela deverá em particular, para começar:
1.º Dotar-se dos meios — nomeadamente uma revista teórica — para levar a cabo análises e debates de questões importantes sobre as quais a unidade está por aperfeiçoar.
2.º Fornecer aos diferentes membros da associação, mais ou menos dispersos e autónomos, uma base comum para as suas atividades.
3.º Organizar uma centralização das experiências práticas a fim de delas tirar, em relação com a análise teórica e o seu aperfeiçoamento, uma síntese que permita aperfeiçoar as atividades e a tática da associação, alimentar o debate crítico, melhorar a ligação com os proletários. Isto até ao momento em que os resultados obtidos sejam suficientemente convincentes para se poder fundar um novo partido comunista segundo uma doutrina, uma forma, objetivos determinados por todo o trabalho prévio.
Ao examinar as revoluções passadas, que acabaram por fracassar, e depois a situação atual do capitalismo, vemos finalmente que duas condições que Marx (45) colocava como conjuntamente necessárias ao sucesso de um processo revolucionário comunista de abolição da condição de proletário estão hoje reunidas, e não estavam antes. A saber:
1) O esgotamento da acumulação (do crescimento) capitalista, que condena os proletários a enfrentar esse processo, ou a sofrer uma descida aos infernos duma amplitude, duma violência destrutiva sem precedentes.
2) A existência de condições materiais indispensáveis ao seu sucesso.
Resta inventar e construir a força organizada consciente “das condições, da marcha e dos fins gerais do movimento proletário” (46), o partido comunista adequado a esta época nova.

Paris, Outubro 2014
NOTAS
(1) “A revolução poderá vir mais cedo do que possamos desejar. O cúmulo da infelicidade é quando os revolucionários têm de se preocupar com o pão das pessoas”. Carta de Marx a Engels, 9 de Agosto de 1852.
(2) Cf. nota (1). Ou ainda: “O desenvolvimento das forças produtivas é uma condição prática absolutamente indispensável, porque, sem ela, será a penúria que se tornará geral e, com a necessidade, é também a luta pelo necessário que recomeça e recair-se-ia no mesmo velho lamaçal”. (IA, p. 33, nota 1). Para uma discussão crítica sobre o processo revolucionário comunista nos países com forças produtivas insuficientemente desenvolvidas, ver T. Thomas, K. Marx e a transição para o comunismo, ed. Albatroz, Paris, 2000.
(3) K. Marx, carta a Kugelmann de 17 de Abril de 1871.
(4) K. Marx, Crítica da economia política, ES, p. 169.
(5) Sobre a oposição entre “reino da necessidade” e “reino da liberdade”, cf. K. Marx, III, 3, p. 198-199.
(6) “Aqui ainda o trabalho é a coisa capital, o poder sobre os indivíduos, e enquanto esse poder existir haverá também uma propriedade privada” (IA, p. 49). Portanto, haverá um movimento proletário limitado por essa relação social, um movimento reformista se ele aceitar esse limite e não se empenhar na via da sua abolição.
(7) A relação salarial “habitua o trabalhador a ver a sua única possibilidade de salvação no enriquecimento do seu senhor” (K. I, 3, p. 60). Habituação que é a penetração da ideologia burguesa entre os trabalhadores: reformismo, nacionalismo, corporativismo são alguns dos seus reflexos.
(8) O jornal Le Parisien de 26.04.14 titulava, a propósito duma sondagem, “Hollande é verdadeiramente de esquerda?” Claro que sim! Tal como os seus predecessores de esquerda Mitterrand, Mollet, Thorez, Blum, e todos os anteriores, por exemplo os coveiros da revolução de 1848, os Barbès, Ledru-Rollin, Louis Blanc, Raspail, etc.
(9) Obras completas, t. 12, p. 235
(10) Não se ignora que houve no passado lutas revolucionárias e militantes comunistas notáveis. Trata-se de saber por que razão permaneceram minoritários.
(11) O que Marx e Engels de início não previam quando escreviam em 1848, no Manifesto do Partido Comunista: “O operário moderno, pelo contrário, longe de se elevar com o progresso da indústria, desce sempre mais baixo, abaixo das próprias condições de vida da sua classe”. Ed. Avante, p. 48.
(12) C. K. I, 2, p. 183-191.
(13) Carta de Engels a Kautsky, 12 Setembro 1882, in Marx-Engels, Obras Escolhidas, T. 3, p. 511, ed. do Progresso, Moscovo.
(14) Os dois estão ligados. Mas não se pode, segundo uma interpretação dita “leninista”, destacar apenas o segundo.
(15) Lenine previu aliás esta situação dizendo que a revolução política seria bastante fácil nos países de penúria, mas o processo para o comunismo muito difícil. E o inverso para os países de abundância.
(16) Lembremos que o termo social-democrata designa, para resumir, as organizações ditas de esquerda, tais como, em França, o PG [Parti de Gauche], o PC e o PS e os seus satélites sindicais, defensores de uma via pacífica legal e estatista para o “socialismo”.
(17) Cf. um resumo desta análise em T. Thomas, A ascensão dos extremos, 190 teses sobre a situação atual (p. 11 a 17), Ed. Jubarte, 2013.
(18) Segundo um levantamento realizado pela renomada agência U. S. Standard & Poors entre as 200 mais importantes empresas em todo o mundo, as despesas de investimento caíram em 2013 em 1% e deve declinar ainda mais em 2014. A mesma agência indica (Les Echos, 07/10/2014) que nos EUA "dividendos e resgates de ações representam 95% dos lucros das empresas do S&P500" (índice das 500 maiores empresas listadas na Bolsa de Valores). Isso significa que eles reinvestem na melhor das hipóteses 5% desses lucros.
(19) Brasil, Rússia, Índia, China, África do Sul.
(20) Problemas económicos n.º 3006, 01/11/2010.
(21) Segundo o INSEE [Instituto Nacional de Estatística francês], o poder de compra das famílias em França diminuiu de 0,7% em 2001, de 1,8% em 2012, de 0,9% em 2013. E trata-se apenas de uma média que oculta o facto de os 5% mais ricos se terem tornado mais ricos, e de, contrariamente, portanto, a quebra do poder de compra da maioria ter sido muito mais forte do que essa média mostra.
(22) Ver por exemplo T. Thomas, La Crise. Laquelle.? Et après?, p. 86-94. éd. Contradictions, Bruxelles, 2009
(23) Em termos marxistas, tal política aumenta o sobre-trabalho dos trabalhadores ativos, que são em número mais reduzido, não permitindo portanto que esse sobre-trabalho se converta em mais-valia.
(24) “O reino da liberdade começa apenas onde se cessa de trabalhar por necessidade imposta do exterior”. K. I, 3, 198.
(25) “O livre desenvolvimento da cada um é a condição do livre desenvolvimento de todos”, Marx e Engels, Manifesto do Partido Comunista.
(26) Então o trabalho “não será apenas um meio de vida, mas tornar-se-á a primeira necessidade vital”, escrevia Marx na sua Crítica do programa de Gotha. Frase em que ele tinha em vista o trabalho rico, contrariamente à que foi citada na nota 6.
(27) Cf. Partager le travail cést changer le travail, T. Thomas, ed. Paris 1994.
(28) Apesar de senil, o capital não se desmoronará por si mesmo. Não existe para a burguesia situação sem saída, com exceção de um processo revolucionário comunista vitorioso capaz de abolir as raízes da sua existência.
(29) O Capital, Livro I, Tomo 2, pág. 50.
(30) Cf. T. Thomas, Nécessité et possibilité du communisme, ed. Jubarte, 2013.
(31) Gustave Lefrançais, dirigente da Comuna de Paris, em Souvenir dʼun révolucionaire. ed. La Fabrique. E também Lenine (O.c. T. 24, pág. 135): “O principal erro que os revolucionários podem cometer é olhar para trás para as revoluções do passado”.
(32) Ver por exemplo uma predição deste tipo no muito mediatizado J.Rifkin, em La Nouvelle Société du coût marginal zéro, ed. Les liens qui libèrent.
(33) Como, por exemplo, M. Postone, R. Kurz, A. Jappe, para citar alguns desses teóricos.
(34) A. Jappe, Crédit à mort, ed. Lignes, 2011.
(35) Cf. Crise 1, p. 49-74, Crise 2, capítulo 3.
(36) Não se trata já, nomeadamente com os grupos neofascistas como a FN, de um reformismo clássico. As bases ideológicas assentam nos mesmos fetichismos, mas neste caso levados ao extremo numa espécie de integrismo, bárbaro como todos os integrismos. Cf. T. Thomas, La montée des extrêmes, de la crise économique à la crise politique, ed. Jubarte, 2013.
(37) Carta de Marx a Ruge, em K. Marx, F. Engels, Correspondance, ES, I, 296.
(38) Só para citar uma nota de ordem geral, a ONG Global Footprint Network calculou que o consumo da humanidade ultrapassa hoje em 50% as reservas de recursos renováveis (biocapacidade do planeta). Ou seja, seriam precisas 1,5 Terras para satisfazer um tal consumo. Excesso que, segundo essa ONG, poderia atingir 200% em consumo energético e alimentar considerando um crescimento demográfico moderado.
(39) No momento em que se vê que o Estado é obrigado a organizar a degradação contínua da situação dos proletários para assegurar, como é sua função intrínseca, a existência do modo de produção capitalista; no próprio momento, portanto, em que se torna possível, e mais que nunca necessário, combater com fatos evidentes todas as formas da ideologia burguesa assentes no fetichismo do Estado, os partidos do extremismo estatal, que são, cada um a seu modo, a FN e a FG, lançam uma ofensiva de propostas para reforçar esse Estado, pretendendo que com eles à cabeça ele estaria ao serviço da Nação, do povo, do “as pessoas primeiro”, e outras patetices. Quer dizer, eles defendem a respeito do capitalismo e do seu Estado uma espécie de terapia agressiva em lugar de acabar com eles de vez.
(40) “Teoricamente, [os comunistas] têm sobre o resto do proletariado a vantagem de uma inteligência clara das condições, da marcha e dos fins gerais do movimento proletário.” (Marx, Engels, Manifesto do Partido comunista). Gustave Lefrançais, (obra citada) havia de constatar a propósito dos Communards de 1871 que “o saber, a compreensão, não estiveram, sem dúvida, à mesma altura das suas outras qualidades”.
(41) A ONG Oxfam calculou que em 2014 as 85 pessoas mais ricas do planeta possuíam tanto como os 3,5 mil milhões mais pobres, isto é, 1,7 biliões de dólares. Ou que o 1% dos mais ricos detém metade da riqueza mundial. Seja qual for o rigor destes cálculos, diversas fontes confirmam que a disparidade é absolutamente escandalosa. Mas se se distribuíssem os 1,7 biliões entre esses pobres daria 486 dólares a cada um! Uma tal medida por si só não melhoraria a situação. E tal não se repetiria.
(42) Citado em A. Soboul, Paysans, Sans-Culottes et Jacobins, Paris, 1966.
(43) KM, Salário, Preço e Lucro, 1865.
(44) É por faltarem tais condições que em França, como na Europa, todas as tentativas para construir uma organização comunista sobre os supostos escombros do reformismo após Maio-Junho 1968 — conduzidos embora por muitos militantes devotados, conquistados para o comunismo, ativos entre a classe operária — fracassaram.
(45) “Uma formação social nunca desaparece antes que estejam desenvolvidas todas as forças produtivas que ela possa conter, nunca novas e superiores relações de produção substituem aquelas antes que as condições de existência material dessas relações tenham eclodido no próprio seio da velha sociedade”. KM, Contribuição para a crítica da economia política (prefácio), ES p. 5.
(46) KM, FE, Manifesto do partido comunista.

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