quarta-feira, 29 de outubro de 2008

Comentário sobre as cartas de Engels

Friedrich Engels (1820-95) foi o genial co-autor da teoria marxista junto com Karl Marx (1818-83) e, também em sua companhia, dirigente comunista e fundador da Associação Internacional dos Trabalhadores. Após a morte de seu camarada teve depositada em seus ombros a responsabilidade principal pelo desenvolvimento e divulgação da teoria e pela direção do movimento revolucionário dos trabalhadores em todo o mundo. Nessas condições, coube a ele a tarefa de editar e publicar os manuscritos deixados por Marx do que viriam a ser os volumes II e III de O Capital; de traduzir, rever e prefaciar as novas edições de obras de ambos; e de continuar suas atividades de teórico e publicista. Ainda permaneceu intimamente ligado ao desenrolar das lutas revolucionárias em todo o mundo, em permanente intercâmbio com dirigentes revolucionários na Alemanha, França, Estados Unidos, Rússia e diversos outros países, além de acompanhar em detalhes a evolução da conjuntura política e econômica e as transformações do capitalismo.

Este post mira exatamente esse último aspecto da atividade de Engels. Em textos do final de 1884 e início de 1885 e, depois, em seguidas cartas no começo de 1886 – quando já havia completado 65 anos – Engels se debruça sobre a crise econômica que assolava a Inglaterra naquele período e não apenas lhe desvenda seu caráter mais profundo como lhe aponta novas características.

Olhando com os olhos de hoje, percebemos que o que Engels identificava como novos aspectos são as primeiras manifestações da fase imperialista da economia mundial capitalista. Que Engels via, de fato, essas transformações em direção à nova etapa, monopolista, do capitalismo, seria reafirmado, alguns anos depois, em nota que escreveu à 4ª edição alemã de O Capital, de 1890 (quando Engels já contava quase 70 anos!):

“Em dado ramo de negócios, a centralização teria alcançado seu limite último se todos os capitais aí investidos fossem fundidos num só capital individual.
Nota à 4ª. edição: Os mais recentes trusts ingleses e americanos já se voltam para esse objetivo, procurando reunir ao menos todas as grandes empresas de um ramo de negócios em uma grande sociedade por ações, tendo, na prática, o monopólio. – F.E
.” (MARX, Karl. O Capital, vol. 1, t. 2. 3ª ed. São Paulo: Nova Cultural, 1988, pg. 188).

Isso mais de um quarto de século antes de Lênin (1870-1924) escrever Imperialismo, Fase Superior do Capitalismo!

A crise econômica que ocorria sob os olhos de Engels é, atualmente, conhecida como a Longa Depressão, que se iniciou com o pânico de 1873 e durou, com altos e baixos, mais de vinte anos, até 1896-97. O que primeiro chama a atenção de Engels nessa crise é a sua permanência, ou seja, a incapacidade da crise econômica de cumprir a sua função tradicional – queimar capital sobreacumulado – em magnitude suficiente para permitir a retomada das condições de acumulação, retomada do movimento ascendente das taxas de lucro, ou um período de prosperidade. Nas palavras de Engels: o “estado de crise tem persistido ininterruptamente”.

Com isso, Engels vê nessa crise a quebra do padrão anterior de crises decenais – que nós hoje podemos dizer ser característico do capitalismo concorrencial – nas quais a acumulação era interrompida por uma crise grave, porém curta, seguida da retomada da acumulação. A “era das crises, no antigo sentido do termo, chegou ao fim”, afirmou ele. Em substituição a essa antiga era, Engels vê o surgimento de uma nova, que se caracterizaria por ser “praticamente uma crise sem fim”.

A questão imediata é o porquê dessa mudança. Engels a atribui ao aumento da produção capitalista não apenas na Inglaterra, mas nos diversos países que surgem como seus competidores na economia mundial. Se antes se poderia dizer, de maneira simplificada, que a produção industrial inglesa era suficiente para abastecer o mundo capitalista, Engels vê não só essa produção aumentando, mas a ela ser adicionada a produção alemã, inglesa e, destacadamente, a dos Estados Unidos. Isso causa o que poderíamos chamar uma superacumulação estrutural de capitais, que gera o que Engels denomina de “superprodução crônica” ou “depressão crônica” em diversas passagens:

“estado crônico de estagnação em todos os ramos dominantes da indústria”;
“superabundância crônica de todos os mercados para todos os negócios”;
“crises se tornam crônicas sem, no entanto, perder nada de sua intensidade”;
“estagnação crônica deve necessariamente tornar-se a condição normal da indústria moderna”.


Ou seja, a perda do monopólio industrial por parte da Inglaterra oriunda do surgimento de novas potências capitalistas, as contradições interimperialistas; a reunião das grandes empresas em uma única S.A., concretizando o monopólio em cada ramo industrial; fenômenos analisados a quente por Engels, caracterizam o início da transformação do capitalismo do século XIX em imperialismo. Adicionemos a isso o crescimento da produção diretamente destinada ao mercado mundial e a plena integração de todo o mundo à produção e ao mercado capitalista. Esse é o capitalismo da era dos monopólios, da fusão do capital bancário com o capital industrial, gerando o capital financeiro, que traz grandes impactos no funcionamento do sistema capitalista, implicando também mudanças nas suas crises.

Vimos, até aqui, que Engels identificou na crise iniciada em 1873 uma crise crônica, permanente, fruto de uma superprodução crônica, causada pelo próprio desenvolvimento do capitalismo na Inglaterra e nos países concorrentes seus no mercado mundial. A partir daí, pudemos dizer que esses aspectos novos da crise são decorrentes das características próprias da fase imperialista do capitalismo, então incipiente e hoje já, desde há muito, integralmente desenvolvidas.

Como afirmou Lênin, no Imperialismo:

“Que os cartéis suprimam as crises, eis uma fábula dos economistas burgueses que se propõem embelezar o capitalismo. Pelo contrário, o monopólio, criado em certas indústrias, aumenta e agrava o caos inerente ao conjunto da produção capitalista” (LÊNIN. Imperialismo, Fase Superior do Capitalismo. 5ª ed. São Paulo: Global, 1989, pg. 28).

Cem anos depois do início da crise analisada por Engels, o imperialismo entra, novamente, em uma crise prolongada, também marcada por altos e baixos. Essa crise – cuja atual fase aberta, iniciada em meados de 2007, culmina processo de trinta anos – apresenta características comuns à analisada por Engels, ao lado de outros aspectos específicos. Enumeramos abaixo, para o debate com os companheiros, as características gerais mais significativas:

1) manutenção de sua característica básica e fundamental de crise do modo de produção capitalista, devido ao agravamento de suas contradições inerentes, expressas na superacumulação de capitais, na conseqüente superprodução de mercadorias e na trajetória tendencial de queda da taxa de lucro.
Nas palavras de Engels: “necessidade de expansão constante, e essa expansão constante torna-se agora impossível”.

2) atuação decidida dos Estados capitalistas, buscando cumprir plenamente sua função de estado-maior do capital e da ordem burguesa, utilizando todos os seus instrumentos (aumento da dívida pública, redução das taxas de juros, relaxamento da regulamentação sobre os ramos de negócio, estatização de empresas falidas e socialização dos prejuízos, etc.) para impedir a crise ou minorar sua extensão.

3) criação e/ou reforço de uma esfera puramente financeira para a acumulação de capitais que não conseguem aplicação produtiva à taxa desejada de lucro. Conversão dessa esfera financeira em local de acumulação predominantemente fictícia de capitais, para a qual converge parcela crescente do capital social, sem, no entanto, resolver o problema da superacumulação.

4) reforço da integração das economias mundiais mediante a transferência de estruturas industriais dos países imperialistas, especialmente os Estados Unidos, para países nos quais as condições de acumulação sejam melhores, isto é taxas de lucro mais altas, especialmente a China. Esse movimento de deslocamento da indústria dá origem a importantes e complexas relações econômicas e financeiras entre os países envolvidos.

5) permanência, em função das características acima, de um estado de crise latente (ou o que Engels denomina como crônico) que o agravamento das contradições fez virar crise aberta neste ano.
Ou como disse Engels: “Nós não passamos, verdadeiramente, por uma grande crise no período em que ela deveria ocorrer, em 1877 ou 1878; mas temos tido, desde 1876, um estado crônico de estagnação em todos os ramos dominantes da indústria. Não ocorrerá nem a crise completa, nem o grandemente esperado período de prosperidade antes ou depois dela, ao qual nós achávamos ter direito. Uma depressão tediosa, uma superabundância crônica de todos os mercados para todos os negócios, isso é o que temos vivido por quase dez anos”

Da mesma forma que a crise presenciada por Engels, esta crise atual apresenta uma magnitude incomum, não vista desde a Grande Depressão iniciada em 1929. Além disso, os mesmos elementos novos que vinham impedindo a ocorrência de uma depressão mundial nas últimas décadas, agora se mostram não apenas impotentes para evitar a depressão, mas são eles mesmos o epicentro do crash que abala toda a economia capitalista mundial. Isso já seria suficiente para seguirmos o conselho de Engels: “Essa é a razão pela qual eu estou acompanhando o desenvolvimento da crise atual com um interesse maior do que nunca”.

Outro fator, ainda mais importante para a atividade dos revolucionários, se impõe. O conhecimento científico das razões e da evolução da presente crise, que nada mais é do que o conhecimento científico sobre o funcionamento do capitalismo atual, em sua fase imperialista, é indispensável à organização do movimento revolucionário organizado e conseqüente. E isso é fundamental para que esse mesmo movimento alcance seus fins.

“O dia em que isso for claramente compreendido neste país será o dia em que o movimento socialista começará aqui, a sério – e não antes”.

* * *

Da mesma maneira que na tradução do artigo “Karl Marx”, de Engels, as traduções abaixo foram feitas por companheiros colaboradores do Blog. Apesar do esforço despendido, não é um trabalho de tradutores profissionais e, assim, permanece a possibilidade de inexatidões e de um texto não tão fluente como o original. Essa é mais uma razão para indicarmos, sempre que possível, links para as versões em inglês ou outra tradução para o português. Todos os negritos são da tradução. Exceto onde assinalado Nota dos Tradutores (NT), todo o texto e as notas foram traduzidos de:

MARX, Karl e ENGELS, Frederick. Collected Works, volume 26. Trabalhos de Engels, de 1882 a 1889. Moscou: Progress Publishers, 1990, pp. 288, 299-301.

MARX, Karl e ENGELS, Frederick. Collected Works, volume 47. Cartas de Engels, de 1883 a 1886. Nova Iorque: International Publishers, 1995, pg. 390, 396-97, 402, 407.

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